29.4.18

Eles fizeram A Criação

Pedro Carneiro © Rui Gaudêncio

Pedro Carneiro teve uma capacidade excepcional de, com a exigência máxima, trazer à luz também o máximo prazer de fazer música.

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A Criação, de Joseph Haydn. Com Carla Caramujo, Thomas Michael Allen, Peter Kellner, Ana Quintans e Wolfgang Holzmair. Coro Voces Caelestes. Orquestra de Câmara Portuguesa. Direcção musical: Pedro Carneiro. Grande Auditório do Centro Cultural de Belém. Lisboa, 26 de Abril, às 21h

No princípio, a sala quase encheu. Mas ainda não havia forma. E logo Pedro Carneiro lançou o gesto inicial, com aquela respiração que já é música. A orquestra lançou-se à Criação de Haydn com uma alegria que fez luz. Os espectadores viram que isso era bom, e não largaram os ouvidos dali, porque a respiração da Orquestra de Câmara Portuguesa não deixava. Viriam solistas de grande qualidade acrescentar o verbo à maravilhosa música de Haydn. E assim foi. Thomas Michael Allen, um tenor sóbrio e cuidadoso com a palavra, foi um Uriel magnífico que logo deu ordem à desordem no primeiro dia. Peter Kellner, um baixo jovem e capaz de uma articulação precisa, anunciou as primeiras tempestades. E a música respondia, numa perfeita harmonia, com os seus gestos e as suas alusões, criando imagens e ilustrações, numa linguagem clássica mas ousada, descobrindo paralelos sonoros para as acções divinas através de novas formas e efeitos da orquestra. Carla Caramujo, soprano, parecia fazer cantar a natureza, sem poupar no vibrato, mas também sem se distrair da obra criada.

Para criar este mundo era preciso também um coro como o Voces Caelestes, que apareceu colorido e deu cor — e uma enorme vitalidade — às descrições e aos louvores a Deus, a confirmar que estava tudo bem feito. Que magnífico louvor, logo ao segundo dia! Pouco depois, um espectacular trio que põe o verbo de novo ao centro. É a palavra que cria tudo? Não, nesta Criação a música faz mais de metade. E até a palavra é música. Claro, Ele fez a criação, fez a terra e o mar que sobra. Mas quase tudo o resto foi obra da Orquestra de Câmara Portuguesa.

A certa altura, A Criação adensa-se, faz-se forma monumental, e hão-de aparecer baleias e insectos, rouxinóis e minhocas, peixes e veados. Carla Caramujo cantou maravilhosamente o vôo dos pássaros, antes de haver qualquer infelicidade nesta terra. Peter Kellner pôs o céu a brilhar, e desceu aos mais baixos graves para dizer do que rasteja. E Thomas Allen cantou notavelmente a criação do ser humano, esse ser capaz de admirar o mundo. Na segunda parte, depois do intervalo (“Ainda não acabou! Ainda não acabou!”), mais dois excepcionais cantores: Eva e Adão. Ela, de vermelho, foi Ana Quintans, e ele, de laço, foi Wolfgang Holzmair. E cantaram belissimamente o amor humano, aquilo que na primeira parte era só divino.

Até nos esquecemos que foi Haydn que fez tudo isto acontecer. Porque a Orquestra de Câmara Portuguesa, numa revelação impressionante de rigor e alegria, não “descreveu” só A Criação, essa obra de Haydn. Estes músicos jovens e talentosos foram ao centro da música, aos seus detalhes, enquanto eram capazes de criar também a grande forma, e de ver o todo. E de fazer seu esse todo. Pedro Carneiro teve uma capacidade excepcional de, com a exigência máxima, trazer à luz também o máximo prazer de fazer música. É difícil dizer se o que nos emociona é aquela ária com flauta, ou duas simples notas de um fagote, quando todos os intérpretes fazem para todos, para a música poder nascer e contagiar os ouvintes.

O que é notável neste Haydn, assim feito e assim vivido, é que não é só de uma criação que se trata, mas de uma transformação. Que nos pode transformar a nós, à escuta. E assim foi.

[Crítica de Pedro Boléo, no jornal Público]