9.2.16

A estreia e a milionésima vez

A violinista Tamila Kharambura brilhou com uma sobriedade imensa
Uma estreia emotiva do Concerto para violino de Pinho Vargas foi acompanhada por uma revisitação muito conseguida da Nona de Beethoven.

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Orquestra Metropolitana de Lisboa. Garry Walker - maestro. Voces Caelestes. Sérgio Fontão - maestro do coro. Tamila Kharambura - violino. Liliana Nogueira - soprano. Cátia Moreso - mezzo-soprano. Marco Alves dos Santos - tenor. José Corvelo - barítono. Lisboa, Grande Auditório do Centro Cultural de Belém. Domingo, 7 de Fevereiro, às 17h. Obras de António Pinho Vargas e Beethoven

Uma estreia tem sempre aquele sabor de “pela primeira vez”? Nem sempre. O novo Concerto para violino de António Pinho Vargas parecia uma obra estreada há muitos anos e já plenamente integrada no reportório de violinistas e orquestras. Talvez esta sensação venha da forma como a violinista Tamila Kharambura pegou na obra, numa ligação profunda com ela, como se a conhecesse desde sempre. Talvez venha também de um diálogo consciente com a história da música que esta obra suscita, não por citação ou referência directa, mas como se citasse gestos que o violino e a orquestra incorporaram. O que é especial no concerto de Pinho Vargas é que esse diálogo não estabelece uma relação objectivista (nem “burocrática”) com a história, mas ganha uma dimensão íntima.

Este Concerto para violino é dedicado ao violinista arménio Gareguin Aroutiounian, falecido em 2014. Uma dedicatória a um amigo músico e professor, um cúmplice da aventura musical e do ensino. Em jeito melancólico (como podia ser doutra forma?), mas sem choradinhos, a obra parte em busca de traços da presença desse amigo. Ele está no violino, mas está também num carácter melódico (vindo de leste?) e nalguns elementos orquestrais como o peso das cordas, ou os elementos de percussão. E esteve sobretudo nas mãos da violinista, Tamila Kharambura, que brilhou com uma sobriedade imensa, se é que isso é possível.

Kharambura foi aluna de Gareguin Aroutiounian, “sua discípula predileta nos últimos anos”, como se podia ler no programa. Ela participou na revisão da parte solista desta obra, trabalhando com o compositor. E foi aí que este concerto em quatro andamentos, de desenho aparentemente convencional, partiu para outra dimensão. No primeiro andamento o violino ainda estava dentro da orquestra, como se o som não saísse ainda completamente para fora. Mas depois, a pouco e pouco, com Tamila Kharambura, o concerto viajou para uma beleza, aí sim, inaudita. Nas partes solistas paira uma emoção suspensa, com surpreendentes inserções, como uma referência a Bach lá no meio, como se a aluna lembrasse aquela partita daquela aula de violino. E o Lamento Largo final, onde a dimensão de homenagem fica clara: lamento enorme, mas catarse contida.

Na segunda parte, a Nona Sinfonia de Beethoven. E aqui foi ao contrário. A obra arquifamosa e tantas vezes tocada parecia fresquinha, acabada de nascer. É que, apesar da fama, a Nona é uma estranha sinfonia, cheia de cortes, recomeços, interjeições, coisas aparentemente fora do lugar. O Beethoven excessivo, intransigente, inquieto do fim da vida. A Orquestra Metropolitana de Lisboa, com Garry Walker na batuta, conseguiu fazê-lo muitíssimo bem. Com a participação empenhada e colorida (não falo dos trajes, mas das vozes) do Coro Voces Caelestes e de um sólido conjunto de solistas que cumpriu a tarefa difícil de ir directo ao assunto, porque é assim que tem de ser no último andamento – não há tempo para aquecer.

Beethoven tinha confiança na Humanidade inteira: Irmãos! Milhões! Alegria! Há qualquer coisa disso que, apesar das desilusões ou apesar da morte dos amigos, permanece e vive. Está ali, naquela voz, naquela frase da trompa, num violoncelo que fala, num fagote que canta. Não é o busto surdo de Beethoven, mas a música fazendo-se, desafiando o tempo. Estreia ou milionésima vez: a música é sempre gerúndio.

[Crítica de Pedro Boléo, no jornal Público]

7.2.16

Pinho Vargas e Beethoven no CCB


> Domingo, 7 de Fevereiro, 17h00
> Lisboa, Centro Cultural de Belém [Grande Auditório]
> Mais informações em https://www.ccb.pt/Default/pt/Programacao/Musica?A=485

PROGRAMA

António Pinho Vargas (n. 1951) 
Concerto para Violino e Orquestra [estreia absoluta]

Ludwig van Beethoven (1770-1827)
Sinfonia n.º 9 em Ré Menor, op. 125, Coral 

Orquestra Metropolitana de Lisboa
Voces Caelestes 
Tamila Kharambura, violino
Liliana Nogueira, soprano 
Cátia Moreso, meio-soprano
Marco Alves dos Santos, tenor 
José Corvelo, barítono 
Sérgio Fontão, maestro do coro 
Garry Walker, direcção musical

Neste concerto, o coro Voces Caelestes foi constituído pelos seguintes 36 cantores:

Sopranos
Filipa Passos
Inês Lopes
Marisa Figueira
Mónica Antunes
Mónica Santos
Patrycja Gabrel
Rosa Caldeira
Tânia Viegas
Verónica Silva 

Altos
Catarina Saraiva
Fátima Nunes
Joana Esteves
Joana Nascimento
Mafalda Borges Coelho
Maria Salazar
Marta Queirós
Michelle Rollin
Patrícia Mendes 

Tenores
Aníbal Coutinho
António Gonçalves
Diogo Pombo
Frederico Projecto
Gonçalo Pinto Gonçalves
Jaime Bacharel
Nuno Miguel Fonseca
Pedro Cachado
Pedro Rodrigues 

Baixos
Fernando Gomes
José Bruto da Costa
Leandro César
Manuel Rebelo
Miguel Jesus
Nuno Gonçalo Fonseca
Pedro Casanova
Rui Borras
Tiago Batista

6.2.16

"Núcleo duro" de cantores e o "ouro" da voz de Carlos Mena

Cinco dos seis cantores neste disco gravaram a Spinalba. Uma solidez que transparece igualmente da escrita musical

Mesmo que o Trionfo d'Amore não tenha a envergadura da Spinalba, esta gravação beneficiou ainda assim de dois pormenores: a adição de um grande contratenor ao elenco (o espanhol Carlos Mena, uma aquisição de luxo!) e, no interim, o desenvolvimento ascendente verificado nas carreiras de Ana Quintans, Fernando Guimarães e João Fernandes no repertório barroco. Juntando-se-lhes umas Cátia Moreso e Joana Seara que acusam o "repto" e correspondem, temos um sexteto de cantores naquele estado dito "de graça", capazes do brilho técnico e de inúmeras colorações que emprestam espessura, dramaticidade, credibilidade e poder sugestivo/evocativo às personagens que encarnam.

Atrás deles, os Músicos do Tejo são uma "máquina" cada vez mais bem oleada e burilada, ora sacudidos ora embalados pela direção de Marcos Magalhães. E como esquecer os Voces Caelestes, depois daquele soberbo coro final?

Dito isto, estamos perante nem duas horas de música, mas de uma qualidade da escrita vocal e instrumental sempre boa, e muitas vezes excelente. Se o ato I ainda pode deixar uma impressão algo dispersa, de lampejos, menos definida, já o ato II é um tour de force musical e de noção do sentido dramático a nível do melhor que se fazia na Europa na altura (o referencial costuma ser Händel...): um diamante bruto, com as facetas deste, mas com os reflexos de inúmeras pedras preciosas! São 54 minutos que valem por muitas horas de música: a sucessão dos recitativos (faixas 3-6), a alternância entre secções de luz/negritude (tendo a comovente ária - ou canção?; ou lamento? - de Nerina In queste lacrime por ponto culminante) e o desenlace (desde a faixa 14). E como se pode verter tanta beleza e ternura em meros 43 segundos (dueto Dopo lacrime tante)? E por fim o magnífico coro final, dir-se-ia trazido de uma oratória! Por tudo isso, viva Francisco António de Almeida!

Il Trionfo d'Amore
Francisco António de Almeida
Ana Quintans, Carlos Mena, Joana Seara, Fernando Guimarães, Cátia Moreso, João Fernandes, Voces Caelestes, Os Músicos do Tejo, Marcos Magalhães
Naxos
***** excecional

[Crítica de Bernardo Mariano, no Diário de Notícias]