Deus. Pátria. Revolução
Recriação musical de Luís Bragança Gil. Solistas: Alexandra Moura (soprano), Inês Madeira (mezzo), Fernando Guimarães (tenor) e Rui Baeta (barítono). Coro Voces Caelestes. Orquestra Aldrabófona. Direcção cénica: Luís Bragança Gil e António Pires. Dramaturgia: Luísa Costa Gomes e Luís Bragança Gil. Lisboa, Centro Cultural de Belém. 28 de Fevereiro às 21h00. Sala cheia
"Não discutimos Deus e a virtude. Não discutimos a Pátria e a sua história. Não discutimos a Autoridade e o seu prestígio." São palavras de um discurso de Salazar em 1936. Mas juntar o Deus e a Pátria à Revolução, só pode ser uma provocação. E não é que é mesmo?
Este espectáculo é o oposto do "não discutimos". A recriação/colagem proposta pelo compositor e investigador Luís Bragança Gil (que aqui também foi maestro) é muito discutível. Ainda bem. Se Deus. Pátria. Revolução não for pensado, falhará os seus intentos: ser uma proposta crítica de escuta de um grande conjunto de canções passadas, de hinos fascistas a canções de luta contra o salazarismo, e do nacional-cançonetismo à música de José Afonso. Ao contrário dos hinos do fascismo (ou do futebol, entre outros) feitos para obedecer - ou comprar - sem pensar duas vezes, este espectáculo exige pensar duas vezes.
Duas ou mais: quando ouvimos aplaudir durante o espectáculo um hino colonialista e militarista como Angola é nossa, símbolo do terror, é inevitável pensar: "O que é que estão a aplaudir?" Terá falhado o espectáculo, ou o sentido crítico dos espectadores? Ou alinharam na brincadeira de "seguir os hinos"? Na encenação a luz muda, e mudamos de quadro. Felizmente, Angola não é nossa. Não é sempre para rir, esta comédia. Nem se pode ir cegamente atrás.
O espectáculo propõe uma escuta no teatro (os primeiros quadros são muito conseguidos), num lugar que reenquadra as canções. Muda-lhes os sentidos. Mas surge uma questão de peso - como tornar leves canções que serviram a exploração e a guerra? Como tirar as canções da história para as escutar com outra frescura sem esquecer que algumas outras (as marchas, danças e canções de Fernando Lopes Graça) foram proibidas e que se podia ser preso por cantá-las? Cheio de armadilhas, o espectáculo contorna bem muitas, mas é menos claro noutras ocasiões, quando ridiculariza apenas ou quase cai no medley (na "feira da revolução"). Junta canções inconciliáveis, cria a ambiguidade, para dar depois um murro no estômago. E dá mesmo, na emoção de Os homens que vão prà guerra, muito bem cantado pelo coro Voces Caelestes, que fez um belo, empenhado (e difícil) trabalho em todo o espectáculo. É verdadeiramente cómica a canção ligeira Não, não e não (excelente aqui Alexandra Moura) depois da extraordinária Arte de furtar (de José Afonso) na grande interpretação de Inês Madeira, sempre muito clara na dicção (e o texto também faz parte da forma das canções). O canto operático serve bem a comédia, mas pode falhar nalgumas canções de Zeca Afonso ou Sérgio Godinho. As muito boas vozes e o trabalho de equipa de Rui Baeta, Fernando Guimarães, Inês Madeira, Alexandra Moura e do coro responderam à questão do "como cantar isto?".
Pequenos enganos nas letras das canções podiam ser corrigidos. Mas o fundamental foi o ritmo e a adrenalina de Deus. Pátria. Revolução (para isso contribuiu também a força da Orquestra Aldrabófona), fruto de um inteligente trabalho de organização, sobreposição e confronto dos materiais. Uma trama cénica e musical que interroga a (perigosa) capacidade que a música tem de mobilizar as massas. "Que força é essa que te manda obedecer?"
[Jornal Público, 3 de Março de 2009. Crítica de Pedro Boléo.]
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